(88)99216-3040

Em busca de um conceito de cultura e sua relação com a ciência

Professor Pedro Adjedan escreve sobre o Dia Nacional da Cultura e da Ciência, celebrado neste 5 de novembro, destacando a universidade como espaço de saber e resistência.

05/11/2025 13:54 pm - Atualizado em 05/11/2025 13:59 pm - COMPARTILHE: - + Imprimir

O Dia Nacional da Cultura e da Ciência, celebrado em 5 de novembro, constitui um convite à reflexão sobre a própria natureza da universidade como espaço de produção e construção de saberes. Pensar cultura e a ciência é pensar no emaranhado em que a própria humanidade se produz, suas formas de expressão, invenção e transformação do mundo. No contexto universitário, essas duas dimensões se entrelaçam em uma mesma tarefa civilizatória que leva em conta a necessidade de se compreender o ser humano e suas obras em diálogo com a natureza, com a sociedade e com o conhecimento que ambos produzem. Nesse sentido, a universidade é onde os fios da cultura e da ciência se entrelaçam, configurando-se como mediadora entre os saberes tradicionais e os saberes científicos. Nela, o conhecimento é gestado a partir do diálogo entre a razão e a sensibilidade, entre o método e a experiência, entre o saber técnico e o saber popular, num encontro que humaniza o próprio fazer científico e o inscreve na trama mais ampla da cultura.

Mas, afinal, o que é Cultura?

O processo de evolução da capacidade cognitiva do homo sapiens o fez se destacar das outras espécies em função daquilo que ele aprende, reproduz e produz. Uma série de necessidades impulsionou uma habilidade extraordinariamente humana, dando-lhe a possibilidade de elaboração tangível e intangível. Essa elaboração é oriunda das relações que o ser humano estabelece com a sua própria natureza, o que lhe é intrínseco, com o meio ambiente, a natureza exterior e o que está nela, e com os outros indivíduos de todas as espécies que habitam o mundo. O resultado dessas relações estruturais são as invencionices que podem ser tratadas como antropias, ou seja, como cultura. A palavra antropia, empregada aqui, expressa a energia criadora do humano, a capacidade criativa de produzir, reelaborar e ressignificar o mundo a partir das interações que estabelece consigo, com os outros e com o ambiente.

A cultura é o desdobramento dos resultados dessas relações que se materializam nas nossas formas de ser, de agir, de pensar e de sentir. É por meio dela que conseguimos identificar as dimensões que compõem a condição humana, na medida em que usamos o corpo para ressaltar essas dimensões. Como é o caso da dimensão política, que diz respeito à forma como nos organizamos na sociedade e aos papéis ou funções sociais que ocupamos, como a questão do gênero; a dimensão estética, que diz respeito à forma como usamos o corpo para nos presentificarmos no mundo; ou mesmo a dimensão espiritual, que se traduz por meio das maneiras como nos relacionamos com o que se considera divino. Essas dimensões, além de representacionais, tornam-se também objeto de interesse da ciência, que nelas reconhece as bases da experiência humana, aproximando cultura e conhecimento científico na busca por compreender a condição biopsiquicosocial da nossa espécie.

São as expressões que se materializam no espaço e no tempo, seja na forma de manifestações artísticas, tradicionais, eruditas ou nas produções que seguem a lógica da indústria cultural, seja através dos modos de fazer, das técnicas e das vivências de cada povo. O antropólogo Clifford Geertz (2008) defende um conceito semiótico de cultura, acreditando, como Max Weber, que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele próprio teceu”. A cultura é, de fato, um sistema simbólico e representacional, um rastro das humanidades deixado na espacialidade temporal e geográfica. Trata-se de uma elaboração sistêmica determinante no processo de construção das formas de ser, agir, pensar e sentir, resultante de suas conexões e relações de interdependência com o passado e o presente, com a natureza e com os outros sujeitos do mundo. Desse modo, as estruturas sociais de comunicação, como os mitos, as artes, a linguagem, a ciência, a religião e os artefatos materiais e imateriais, tornam-se verdadeiros sistemas culturais, exprimindo aspectos da realidade física e socialmente construída.

A definição de cultura numa perspectiva antropológica é universalista, podendo ser compreendida como tudo aquilo que o homem produz e que se relaciona com suas percepções, sentidos e significados apreendidos nas cotidianidades.

O arcabouço cultural construído pela humanidade ao longo dos tempos tem relação direta com as identidades individuais e coletivas, que emergem de contextos históricos e territoriais diversos. Existe, de fato, uma paisagem cultural, um espaço simbólico onde se manifestam os desdobramentos da cultura. Como afirmou Sauer (1983, p. 343 apud LIMAVERDE, 2015, p. 53), “a cultura é o agente; a área natural é o meio; a paisagem cultural é o resultado”. No caso do Cariri cearense, por exemplo, a identidade cultural está profundamente vinculada à ancestralidade dos povos indígenas da etnia Kariri, responsáveis pela tessitura das representações que conformou o espaço geográfico da Chapada do Araripe. Seus traços persistem através do tempo, constituindo elementos transcendentais que moldam a multidimensionalidade dos sujeitos que habitaram e habitam o seu entorno.

A cultura é o resultado das configurações sociais, e estas, por sua vez, definem as formas subjetivas das individualidades, pois, por meio da socialização, os códigos sociais são interiorizados e reproduzidos que, inclusive, os simbolismos e as representações sociais da cultura são frequentemente moldados por interesses homogeneizantes e pela padronização imposta pela indústria cultural. O sistema capitalista vigente impõe um modelo de consumo cultural que tende a neutralizar a diversidade, relegando ao esquecimento as expressões identitárias locais e as epistemologias que emergem dos territórios. Como já advertiam Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural transforma a criação simbólica em mercadoria, diluindo a singularidade das expressões culturais sob a lógica do mercado. Essa padronização estética e cognitiva atinge também os espaços de formação, tornando urgente repensar o papel da educação e da universidade como espaços de resistência cultural e de produção científica integrada às manifestações e expressões culturais do território em que está situada.

Segundo Stuart Hall (2006), a cultura não se constitui como herança genética, mas como resultado das representações sociais que identificam o homem como membro de uma estrutura societária, de grupos e comunidades. Assim, a vida social é uma expressão dos aspectos culturais, e o comportamento dos indivíduos resulta de um processo de aprendizagem formal ou informal que sedimenta códigos sociais, estruturando identidades e subjetividades (BERGER; LUCKMANN, 2012). Essa aprendizagem contínua revela a íntima ligação entre cultura e ciência, pois é no exercício interpretativo da experiência que o conhecimento se organiza, se refina e se partilha.

Além de todos esses aspectos e significados acerca da cultura, é preciso compreender, também, que o modelo de cultura disseminado pela indústria cultural, consolidado com a digitalização das sociedades e a ascensão da chamada sociedade da selfie informacional, introduziu novos desafios à construção das subjetividades e favoreceu os deslocamentos identitários. As tecnologias, computadores, smartphones e redes digitais são incorporadas como ferramentas centrais nos sistemas culturais, mas, paradoxalmente, promovem a homogeneização e os distanciamentos de traços culturais que nos conectam com nossas origens. Nos tempos atuais, esse distanciamento é particularmente perigoso, pois a perda de vínculos com o território e com a ancestralidade fragiliza nossa capacidade de compreender os colapsos civilizatórios em curso, como o caos ambiental que emerge no Antropoceno e as crises de sentido que atravessam o mundo contemporâneo.

É preciso alertar, ainda, que a juventude contemporânea, em especial, é fortemente influenciada por essa lógica da conectividade global, que enfraquece o vínculo com as raízes culturais e redefine as identidades sob o signo da universalização, do hiperconsumo, da informatização e do uso exacerbado de mecanismos digitais. Mesmo com resistências e ressignificações, as influências cibernéticas e midiáticas continuam a moldar as culturas contemporâneas, intensificando o processo de aculturação. Assim, os costumes, as práticas e os saberes populares sofrem transformações constantes, atravessados pelas forças da globalização e pela midiatização da vida.

Nesse cenário, a relação entre cultura e ciência assume um papel crucial. Ambas são expressões da criatividade humana e se constroem a partir do mesmo impulso de compreender, interpretar e transformar o mundo. A universidade, nesse sentido, tem a responsabilidade ética e política de articular esses dois campos, transformando o conhecimento em ação social e promovendo a circulação de saberes entre os espaços acadêmicos e as comunidades. Ao atuar como formadora e mediadora entre cultura e ciência, ela faz do ensino, da pesquisa e da extensão processos de articulação da interculturalidade, em que o saber acadêmico dialoga com a sabedoria popular, o conhecimento técnico com o empírico, e a racionalidade com poética da vida cotidiana.

Hoje, fala-se cada vez mais em uma ciência cidadã, um paradigma que amplia o alcance da ciência ao incorporar a participação social na produção do conhecimento. Trata-se de uma ciência colaborativa, que reconhece e valoriza os saberes tradicionais, as experiências locais e as epistemologias que se manifestam nos contextos culturais diversos. A ciência cidadã rompe com o paradigma positivista da neutralidade e da hierarquia do saber, reconhecendo que todo conhecimento é contextual e conjuntural. Assim, a ciência cidadã não apenas amplia o horizonte da pesquisa, mas redefine o próprio papel da universidade, convocando-a a ser um espaço onde os saberes são construídos de forma mútua.

A ciência cidadã aproxima a universidade da sociedade, reafirmando a importância da cultura como meio de legitimação e democratização do saber. Nela, o conhecimento científico deixa de ser monopólio dos laboratórios ou mero objeto de pesquisa e passa a ser imbricado às comunidades, em diálogo efetivo com o território. Ciência e cultura revelam-se, portanto, não apenas como formas de produzir conhecimento, mas como caminhos convergentes para a emancipação humana, a valorização das pluralidades e a construção de um futuro em que a vida coletiva poderia ter uma maior valoração. Em última instância, ambas expressam o mesmo gesto humano: o de significar o mundo para nele permanecer com dignidade, consciência e esperança. Se a ciência é o objetivo concreto, a cultura é meio para alcançá-la.

 

Autor: Prof. Ms. Pedro Adjedan David de Sousa


COMPARTILHE: